O texto a seguir é o relato da viagem histórica realizada pelo motociclista João Gonçalves Filho, o GAU, no ano de 1976. Ele rodou 23.285 km das estradas brasileiras com sua Harley-Davidson e se tornou o primeiro motociclista a percorrer a Transamazônica com uma moto.
Essa história foi escrita pelo GAU e publicada na Revista Duas Rodas nº 16.
Maio de 1976
São 11 horas do dia 11 de maio e estou me despedindo do pessoal da Duas Rodas Motociclismo, na porta da redação. À uma da tarde, estou abastecendo a Harley-Davidson na saída da Dutra, rumo ao Rio de Janeiro, debaixo de chuva. E me lembro de um pedido do pessoal da Polícia Rodoviária de Registro, SP: passar no 8º Distrito Rodoviário Federal, no início da Dutra, para conhecer o inspetor Joel. Dizem que este motoqueiro é o melhor da Polícia Rodoviária Federal. Por causa da chuva, não conheci suas habilidades com a moto. Mas nunca vi um policial tão simpático.
Através dele, fico conhecendo um motoqueiro fanático, que não admite que deixe de prestar ajuda a um motociclista. É o chefe do 8º Distrito Rodoviário Federal, Dr. Luiz Aurélio Teixeira Vasques, de quem recebo um cartão com o seguinte texto:
À Polícia Rodoviária Federal – O portador desta, João Gonçalves Filho, nosso particular amigo, está percorrendo o Brasil de motocicleta e solicitamos a todos os integrantes da Polícia Rodoviária Federal que seja prestada ao mesmo toda ajuda possível, quando solicitada. São Paulo,11/05/76 – Dr. Luiz Aurélio Teixeira Vasques – chefe do Serviço de Polícia Federal.
O endereço destes dois embaixadores da Polícia Rodoviária Federal: rua Ciro Soares de Almeida, 180 – Vila Maria – início da Dutra – SP.
Já na Dutra, vou tremendo de frio, parando e tomando cafezinho. Como as luvas estão encharcadas, coloco-as sobre o motor, para secar, até que, em certo momento, deixei-as sobre o escapamento. Toda retorcida, a luva encolhe e quase não me serve. Entro no Rio à uma hora da madrugada, e, com medo de deixar a moto na rua e ir para um hotel, resolvo tocar para Belo Horizonte.
São 3h30 da manhã e chego a Três Rios, Minas, onde durmo num hotel, com a moto bem guardada. Às dez, toco para Belo Horizonte, mas uma informação errada me leva para perto de Petrópolis. Resolvo pegar então a Rio-Bahia e tomo o rumo de Governador Valadares.
(Quando vinha descendo o rio Amazonas, na saída de Manaus, bati um papo através do radioamador da Harley com um pessoal de Valadares, e dei a dica de que a harley estava montando as 1200. No dia seguinte, o pessoal seguiu para Manaus, e agora eu aceitava o convite para uma visita).
Entro na cidade às oito da noite e procuro pelos irmãos Beto, Tininho e Ângelo. Como perdi o endereço, começo a perguntar e todos na cidade conhecem os irmãos Machado. Fico na casa de Tininho, a moto é sucesso na cidade. Conto que não fui a Belo Horizonte e, no dia seguinte, sou levado até o avião da família. Entro e me avisam que vamos a Belo Horizonte, para que eu conheça a cidade. Incrível um negócio desses…
Fico quatro dias na cidade, vejo a chegada das três Harley compradas em Manaus e resolvo ir para Salvador. Como a Rio-Bahia é muito movimentada, vou dirigindo com cuidado. Felizmente, os caminhoneiros são gente fina – tem caminhão que pára no acostamento para me dar passagem. Faço várias amizades com os caminhoneiros e vou ultrapassando todos. Horas depois, paro para tomar um cafezinho e, na estrada de novo, torno a ultrapassá-los. Sempre vem uma buzinada ou um aceno.
Paro para jantar onde tem o maior número de caminhões. Bato um papo rápido com os motoristas e ouço uma piada sobre como ganhar dinheiro com a moto: é só levar a máquina para Porto Alegre, mandar trucar e fazer transporte de carga.
Termino de jantar e saio atrás das jamantas. Uma hora depois estou no vácuo de uma que vai descendo um chapadão perto de Feira de Santana. A 140 por hora, o motorista me dá pisca-pisca de que posso ultrapassar. A pista está livre, é uma reta, não sou de passar desta velocidade. Mas como a máquina chega aos 200 por hora, acendo os faróis de milha e começo a acelerar a máquina, que estava com gasolina verde. Ultrapasso todas as jamantas mas, dois quilômetros depois, os faróis sobrecarregaram os relés termomagnéticos e todos os faróis se apagam. Nunca senti tanto medo, pois não via nada. O primeiro pensamento foi cair no asfalto e as jamantas passarem por cima de mim. Tento sair para o acostamento e vou parar no meio do mato, onde conheci o gosto do chão. Vou para a estrada, e passa a primeira jamanta, os pneus cantando, mas ela não consegue parar. As de trás buzinam em sinal de alarme, também freando. Um carro, em sentido contrário, apaga os faróis e passa direto. Outro que vê a moto com os faróis acesos no meio do mato, pára e o motorista desce, de revolver na mão, meio escondido. Peço que me ajude a levantar a moto e vou fazer os curativos no primeiro posto, pois tenho os primeiros-socorros. A moto quebrou a carenagem, um farol de milha e arranhou bastante a carenagem. Com o resto, tudo bem, por causa dos mata-cachorros.
Passei por Feira de Santana, onde fico um dia, e sigo para Salvador, onde chego às 11 da manhã. Vou conhecer a Igreja do Bonfim e o Farol da Barra, onde encontro reunido todo o pessoal de moto. Vem sempre as mesmas perguntas: “Quantos HP ?, Quanto corre ? Gasta quanto? Só 120 Km/h ?” “Não, amigo, isto é milha”. À noite, procuro um hotel na estrada e só vou achar um a 140 Km da cidade.
No dia seguinte, estou em Aracaju. Dou uma volta pela cidade, conheço as praias, quase não encontro motoqueiros e resolvo tocar para Maceió, onde encontro seis excelentes motoqueiros. Conheço toda cidade e no dia seguinte sou recepcionado com uma carne de sol incrível. Vamos para a praia dos Sete Coqueiros. Depois, despeço-me da turma, que faz questão de me escoltar até a saída da cidade de faróis acesos.
Chego a Recife às sete da noite e me apavoro com a entrada da cidade, que sabia ser a Veneza Brasileira (mas com pé de pavão). A uns 10 Km da cidade tem uma ponte tão estreita que já tinha um carro embaixo dela e quase dois caminhões se batem em cima, ao se cruzarem. Foi a entrada de Capital mais perigosa que achei, pois não tem iluminação. Confesso que me enrolei e fiquei assustado.
Depois de rodar muito, decido dormir na estrada. Quando estou abastecendo, aparece um cinquentinha e me indica um bar num posto de gasolina, ponto de encontro dos motoqueiros. Leva-me até lá, onde encontro toda turma. Papo vai, papo vem, querem me levar para o Moto Clube de Recife que tem dormitório para qualquer motoqueiro de fora. Como a turma que frequenta este bar é de motocross e moto pequena, que dizem não poder pertencerem a um clube ( que só tem moto grande ), não me deixaram ir para o clube. No bar, há várias motos grandes que também não são do clube. Para ser honesto, não deu para entender a turma, mas me arrisco a dizer que o pessoal do clube vai para a sede com as esposas e são de tocar as motos mais devagar. Isto irrita um pouco o pessoal mais jovem e de sangue quente. Conheci um motoqueiro chamado Israel que, no meio da discussão vai-para-o-clube-não-vai-para-o-clube, diz que vou dormir no hotel dele e que ele vai me mostrar toda a cidade. Com problemas de clube ou não, a turma de Recife é espetacular. Bons pilotos, discutem a noite toda sobre moto, muitas garotas no meio da turma. E foi a cidade em que apareceu mais motoqueiros querendo me hospedar. Já tinha até casa na Boa Viagem para eu passar uma semana.
Deixo Recife e chego a João Pessoa às 14h30. Arrumo um motoqueiro de cicerone, logo depois ele me passa para um Corcel e me mostra as praias, muito lindas. Muita gente fazendo surf.
Tomo o rumo do Rio Grande do Norte e as 8 da noite estou em Natal, praia do Meio. Um motoqueiro me diz que o movimento começa depois das 10. Fico no papo e vou dormir às 2 da manhã. Acordo cedo para ver a praia, famosa pelas tangas de dois dedos. Como está chovendo, resolvo ir para Fortaleza.
Chego a Mossoró às 5 da tarde, procurando gasolina verde, que não encontro. Levo a Harley à melhor oficina de moto da cidade, a Potiguar Motos, onde eles retiram dois elos da corrente, pois já esticou o que podia. O dono da oficina é um excelente sujeito e não cobra nada. Pronto para partir, sou convidado para outra cerveja, experimento um tira-gosto fora de série ( rolinha, um pássaro da família do pombo ).
Chega outro motoqueiro, paga outra cerveja e diz que preciso tomar uma sauna para tirar o cansaço. Tomo um banho e resolvo dormir na cidade.
Às 7 da manhã estou pronto para partir e chegar a tempo de ver as tangas de Fortaleza. No dia anterior, conheci Genivaldo e Paulo, irmãos do dono da oficina que consertou a moto. À noite, falaram que iam comigo a Fortaleza numa Suzuki 250. Mas iam acordar cedo para trocar coroa, corrente e pinhão. A corrente não deu para trocar e, na estrada, com a corrente em péssimo estado, eles tiveram que voltar, depois de 100 Km rodados. Paulo e Genivaldo, vocês são loucos, mas excelentes amigos e motoqueiros. Por sinal, são os único que viajam para fora de Mossoró.
Às 13h40 chego à avenida Beira-Mar, em Fortaleza, e fico com os olhos limpos da poeira, de tanto ver tanga. Em minutos, recebo vários convites para tomar cerveja nos bares da praia. Sentei na mesa do inspetor Salles, da Polícia Rodoviária, que pilota uma Harley há 15 anos.
Depois, procuro uns amigos para quem tinha montado uma fábrica de gelo, há alguns anos, e eles resolvem pagar a conta do hotel. Ando muito pela cidade, que tem as praias cheias de barbatanga ( tanga feita de barbante ).
Passo oito dias na capital de mulheres mais lindas do Nordeste e vou para Teresina. Durmo num hotel, numa cidade chamada Piripiri, interior do Piauí, acordo cedo e vou para Teresina.
Nestes últimos 200 Km, nunca vi tantos jericos (burricos), bodes, gado, carneiros, no meio da pista, principalmente neste horário de 7 da manhã, quando o gado procura melhor pasto.
Reclamo para o pessoal da Polícia Rodoviária, que tem carro-gaiola para recolher animais na pista, me dizem que não adianta recolher porque é gado de gente pobre. Eu falo que não precisa mentir, porque pobre não tem gado Nelore ou Gir e muito menos 500 cabeças de ovelhas. A BR 101 no trecho São Paulo – Curitiba tem fama de ser uma estrada perigosa por causa do segundo trecho em construção. Mas eu digo que não tem estrada mais perigosa que este trecho de Piripiri a Teresina. Na Belém-Brasília, é só comunicar que tem gado na estrada que sai um caminhão para recolher.
Entro em Teresina às nove horas, procurando gasolina azul, e acho um pouco da verde. Sou notícia no jornal O Dia, conheço a Miss Piauí, acho a cidade com um trânsito muito educado, muito limpa e organizada. As noite de Teresina são calmas e o movimento termina às 22 horas.
Assim, vou saindo da cidade, rumo a Bacabal, Maranhão, com uma carta de uma turma de Fortaleza para um médico -motoqueiro da cidade. Mas ele está de plantão e vou dormir. Acordo com a cidade alvoroçada pela moto. Incrível, mas verdade: encontro um rapaz que estava cuidando da Harley desde às seis da manhã, esperando que eu acordasse. Ele pergunta se eu uso gasolina azul e verde misturada, digo que sim. Ele informa que tem 20 litros e vai me arranjar. Saio com ele para encontrarmos o médico Pedro Brito e um motoqueiro do Banco do Brasil.
Almoçamos, depois todos andam na moto. O rapaz que me esperou, o Cesário, tem uma Honda 250 Cross, que está em São Luís para vender – vai comprar uma maior. Cesário está empolgado com a Harley, vai buscar a gasolina a 27 quilômetros, em sua fazenda e, quando volta, me autoriza a dar seu endereço a todos os motoqueiros do Brasil, pois sua fazenda servirá de repouso a quem passa por lá. Só não admite que fiquem menos de dois dias. Ele informa que a fazenda tem quartos para alojar, no mínimo, com pouco conforto, 30 motoqueiros de uma vez. O endereço: Cesário Mariz Maia – Caixa Postal 5 – Bacabal – Maranhão.
Vou agora para São Luís, onde chego às 2h30 da manhã. Como as ruas são muito estreitas, fico com medo pela moto e vou ao quartel da Polícia Militar pedir para guardar a Harley. Depois de perguntas, a moto fica no pátio e vou para o hotel. Acordo às 11 e entro na Honda Moto-Sport, onde conheço Moisés, o gerente, e Benedito, um sócio. Procuro a corrente da Honda 750, pois a minha está no fim, assim como o dinheiro. Sou então convidado a ficar quatro dias em São Luís, como convidado da Honda Moto-Sport. Uns 10 motoqueiros andaram na Harley, querem por toda força os decalques da Duas Rodas que estão no para-brisas da moto. No sábado, o jornal dá uma grande notícia sobre minha viagem. Conheço todas as praias de São Luís, a cerveja Serpinha, caranguejos de todos os tipos, caldo de peixe e camarão…
Hoje é segunda–feira. Quando eu estiver longe de São Luís, os motoqueiros da cidade vão se reunir com o diretor do Detran desta capital, para se organizarem, ver os problemas das placas das motos, que o Detran não tem para entregar, e a carteira de habilitação. Na cidade, poucos têm carta e o Detran vai fazer exame para todos de uma vez e sem burocracia. Por insistência minha, a turma também vai fundar um clube de moto.
Às 3h20 da manhã chego a Castanhal, com problemas na corrente e na coroa gasta. A corrente desliza em qualquer subida e resolvo usar o cartão que o Dr. Vasques me deu. Mas, quando entro no posto da Polícia Rodoviária, guardo o cartão, pois encontrei um motoqueiro amigo meu que serviu na Base Aérea de Manaus, em 71. Durmo no posto e acordo às sete, para apertar a corrente.
A 20 Km de Belém, novos problemas na corrente me obrigam a encostar no posto da Rodoviária. Vou a Belém de carona e uso o cartão para conseguir uma corrente na Polícia Rodoviária do Estado. Em Belém, sou matéria do jornal O Liberal que, no fim, foi o responsável pela minha ida à Transamazônica. Eu declarara ao jornal, quando me perguntaram sobre a estrada, que era para nossos netos, pois meu primo ficou três dias atolado na barro com uma Kombi.
Até Belém, eu já tinha rodado 18 mil quilômetros, levei duas quedas, troquei duas correntes e não furei nenhum pneu. Já tinha acertado o barco que me levaria a Manaus e resolvi passar no jornal para agradecer a matéria. E o Menezes, um jornalista do Liberal, me informou que o pessoal do 2º Distrito Rodoviário ( Departamento de Relações Públicas ) não gostou do que eu falara sobre a Transamazônica.
Minha resposta ao Menezes: se eles me garantirem a gasolina, jogo minha Harley na estrada e faço a primeira viagem de moto pela Transamazônica. Saí do jornal com uma carta de apresentação para o DNER. Lá, sou informado de que não posso receber gasolina assim sem mais nem menos, mas me dão um cartão do 2º Distrito Rodoviário ( depois de me garantirem que a estrada era muito boa ), pedindo apoio para mim, em todo o percurso da Transamazônica. Um rádio da chefia alertaria todas as residências, ao longo da estrada.
Voltei para o hotel, contei minha história e só um hóspede me animou: ele tinha vindo de Marabá ( cidade às margens da estrada ) para fazer um tratamento psiquiátrico. Isso era meio suspeito e quase não dormi à noite. No dia seguinte, contei meu dinheiro: 150 cruzeiros. Vou à oficina de uma amigo meu, que guardara dois baús com um resto de mudança que deveria ter ido para Porto Alegre, e consigo vender algumas coisas por 500 cruzeiros.
O major Teodésio, que já tinha me arrumado a corrente, me consegue mais 20 litros de gasolina verde. Despeço-me do jornalista Menezes, vou ao barco avisar que não viajo mais com eles – lá, me dizem que estou ficando louco de ir pela estrada – e preparo a moto para a grande aventura.
Em frente ao hotel, amarro a tralha, quando chega um senhor com a esposa dizendo que leu a reportagem no jornal e que ficara impressionado porque eu vivo bem com minha esposa, fazendo uma viagem dessas e citando o nome dela e das crianças no jornal. Honestamente, nunca tinha pensado nisso, pois minha mulher é motoqueira e nos respeitamos um ao outro em todos os pontos.
Faço um balanço final: a moto está abastecida, com uma corrente nova e coroa e pinhão gastos, dois pneus carecas, 15 camisas importadas que posso vender na estrada, 162 cruzeiros em dinheiro, um anel de ouro com o símbolo maçônico, quatro caixas de fósforos e uma vela que meus amigos de Manaus me deram, no início da viagem ( a outra, eu acendi em Aparecida do Norte ). E tenho meus dois cartões: um do 8º Distrito e, agora, outro do 2º Distrito, com o seguinte texto:
Belém – 11/06/76 – Ilustre colega: o portador deste, João Gonçalves Filho, da revista Duas Rodas Motociclismo, está se dirigindo à Transamazônica. Em caso de necessidade, muito agradeceria se o prezado colega mandasse prestar todo apoio ao meu apresentado. Cordialmente, eng. Elmir Nobre Saady, chefe do 2º Distrito Rodoviário.
Saio de Belém e, nos próximos 400 Km, vou abastecendo no DNER. Chego à cidade de Estreito, onde a Transamazônica começa a entrar pela selva. Procuro o DNER, mas o mais próximo fica à 130 Km. Às 14h27do dia 12 de junho de 1976, a Harley Davidson sai da Belém-Brasília, bem debaixo da placa que diz:
BR – 230 –Rodovia Transamazônica – Marabá – Altamira – Itaiuba.
A Harley sai jogando terra e cascalho. Estou empolgado, pois serei o primeiro motociclista a percorrer toda a Transamazônica no trecho que atravessa a selva. Não rodei 20 Km e sofri a primeira queda, o que reduziu minha empolgação e me fez prestar mais atenção à estrada.
Venço os primeiros 130 Km e chego à primeira balsa. À noite, ela só atravessa o ônibus que faz Belém-Marabá. Abasteço a moto no acampamento do DNER às margens do rio Araguaia, e fico batendo papo com dois caminhoneiros que pagam meu jantar. A 41 Km de Marabá, primeira cidade no sentido de Manaus, paro num posto de gasolina para calibrar os pneus, pois na piçarra ( uma espécie de pedregulho que reveste a estrada ), o pneu deve andar um pouco mais cheio para que as pedras não cortem as lonas. Quando olho o pneu raseiro, quase caio de costas: de Belém a Estreito, vinha com muita velocidade e isso deu um desgaste maior.
O borracheiro diz que pode inverter os pneus, que eu mesmo desmonto, pois ele não sabe. Mas quase não há diferença entre os dois, e o borracheiro me aconselha a colocar um manchão inteiro, que me custa 40 cruzeiros. Dou uma camisa italiana para ele e me deito no chão da borracharia, enquanto ele trabalha. São 1h50 da madrugada.
Acordo às 9, termino de montar as rodas, amarro as tralhas e vou vencer os restantes 41 Km até Marabá, onde chego às 11. Dou uma volta, passo pela exposição de gado, o vice-prefeito me convida para uma feijoada. Depois, o prefeito me dá uma declaração de que sou o primeiro motoqueiro a cruzar a Transamazônica.
Para sair da cidade, terei que cruzar a segunda balsa, que é um problema. Para entrar nela, de marcha-a-ré, os caminhoneiros têm que retirar os estepes e outro caminhão vai empurrando, com um toro de madeira entre o para-choques. Isto é um problema que a residência do DNER em Marabá poderia resolver facilmente: bastaria uma patrola desbarrancar o ponto inclinado entre a beira do rio e a rampa da balsa.
Essas balsas e pontes da Transamazônica são muito resistentes, todas de madeira, e foram construídas há quatro anos. Mas estão com falta de manutenção: nas pontes 80% das tábuas (por onde passam os pneus dos carros, e que são chamadas de deslizantes) estão soltas ou mal pregadas, e sem as proteções laterais. E o pior é que, nas residências, não há pregos ou outras ferramentas para se fazer o conserto.
Uma firma que assinou contrato com o DNER para construir pontes novas deverá levar em média de 3 a 6 meses para concluir cada uma. Até Humaitá, contei trezentas e poucas, e desisti. É só fazer as contas e ver quanto tempo vai levar para por tudo em ordem. E, quando a última estiver pronta, veja a primeira com quantos anos estaria. Um engenheiro do DNER diz que vão colocar também pontes de ferro, pré-moldadas.
Agora, estou no rumo de Altamira, com uma estrada boa para carros, embora surja uma vala ou uma enorme panela quando se menos espera, o que sempre garante um tombo na moto. Perto de Jatobal, tomo café com o pessoal do acampamento do DNER, que está praticamente parado: o equipamento é novo, mas como faltam peças de reposição, alguns caminhões e máquinas já estão parados.
Hoje encontro os mesmos caminhoneiros que me pagaram o almoço. Fizeram a maior festa comigo. São 5 caminhões que levam novilhas a Altamira, parados agora para dar água e pasto ao gado. Fico com eles até o dia seguinte, me pagam almoço e janta, e dou para eles várias toalhas de hotéis em que fiquei na viagem para Porto Alegre e São Paulo.
Chegamos à balsa do rio Xingu às 11 horas, uma beleza de balsa. O rio é verde azulado, nunca tinha visto isso. Agora, para Altamira são só 64 Km. Comemos peixe e bebemos cerveja à beira do Xingu e vamos embora – um caminhão na frente, eu atrás e mais quatro atrás de mim, numa verdadeira escolta.
Em Altamira, ganho outra declaração do prefeito, dizendo e que sou o primeiro motociclista a passar por ali. Conheço o dono da loja Nova Indiana, um motoqueiro que me paga o hotel para que eu fique mais um dia na cidade ( ele tem a maior moto de Altamira, uma Honda 175 ).
Saio da cidade às 9h20 e abasteço a moto numa residência do DNER à saída da cidade. Procuro meus amigos caminhoneiros, mas eles já se foram. Aliás, se eu fosse do governo federal, levantava um monumento a essa raça de gigantes. Só um caminhão furou 14 pneus e trocou todos eles sorrindo e contando piadas. Escrevo aqui as placas de dois caminhões de Jaboatão, Pernambuco – MA 7086 e MA1013 e agradeço muito o apoio que me deram na Transamazônica.
Depois de um longo papo com o engenheiro-supervisor Cesar Tuma, da residência do DNER de Altamira, aprendi muito sobre a Transamazônica, o DNER e suas residências ao longo da estrada. Soube que, logo após sua inauguração, a rodovia passou quase dois anos sem manutenção. No ano passado, o inverno foi pequeno e eles trabalharam dois meses a mais que nos anos de construção. Hoje, a residência de Marabá só está fazendo os serviços de emergência, por causa da falta de óleo combustível ( a verba de complementação até hoje não chegou ). O verão está a todo pano e há mais de 200 homens parados que, no inverno ( tempo de chuva ), também ficam parados. Algumas sub-residências do DNER não trabalham há mais de oito meses no trecho do Amazonas, segundo informações de um supervisor de uma destas sub-residências. As pontes precisam de reparos que não são feitos porque não há peças ou ferramentas, já pedidas à sede, em Belém. Só agora, por exemplo, estão sendo alargados dois trechos da Transamazônica em que só passa um carro de cada vez – num trecho de 50 Km, para um carro passar, o outro tem que entrar dentro do mato e esperar sua vez. Há informações de que já chegou averba para isso, e que será aberta a concorrência para as obras.
E há problemas de burocracia, como esse que eu vi: uma residência do DNER está em total falta de óleo e vive pedindo a todos óleo combustível para que o serviço de urgência – como um trecho em que a estrada se rompeu – não pare. Eles têm dois geradores de luz: um está em pane, aguardando peças, o outro quebrou um rolamento, que custa uns 20 cruzeiros. Mas o pedido foi feito para Belém, que manda ao Rio, que manda a Brasília. E o dinheiro até hoje não chegou, embora eles tenham dinheiro para material de escritório, que não pode ser usado para compra de outro material.
Há coisas incríveis. Perto do acampamento da Rabello, uma construtora, há uma ponte que parece piada, todos sabem que um pau atravessado no rio é uma pinguela. Lá, a ponte são 15 paus. Isto é uma ponte na rodovia Transamazônica, a maior rodovia do mundo na selva. São os contrastes dessa estrada maravilhosa na qual, quando se viaja a noite, pode-se ver todo tipo de animal selvagem cruzar à sua frente. Mas também pode parecer uma enorme cratera.
Uma coisa maravilhosa é você, durante o dia, tirar a roupa no meio da estrada e entrar num igarapé ( pequenos rios ) de águas cristalinas, tomar um banho e deixar o corpo nu e se enxugar ao sol, sem que apareça uma viva alma. Caso vier um carro, ouve-se a quilômetros de distância, por causa do absoluto silêncio na selva.
No trecho a Itaituba, contei mais de 170 pontes e não tem uma reta: é só subida, descida e curvas. No fim delas, aparece uma ponte de repente. Em Itaituba, procuro um pneu de jipe para colocar na moto, mas consegui resolver o problema com o borracheiro do DNER. Como a câmara já estava sendo comida em vários lugares pelo enorme manchão ( como xinguei o outro borracheiro… ), retirei o manchão, colei a câmara onde estava para furar e mandei fazer um dispositivo para encher os pneus que furassem. Na Harley, é só tirar as duas velas e colocar uma vela com bico soldado e uma mangueira de ar e dar na partida elétrica: em 1m20s, tenho 24 libras de ar em qualquer pneu. Com isso e duas câmaras, desisti do pneu do jipe.
Em Itaituba, fiquei hospedado na casa do cabo Alceu, motoqueiro dono da maior moto da cidade, uma Honda 360. A esposa dele serviu um jantar com paca a milanesa e mutum ( espécie de peru do mato ). Foi o melhor jantar de todo o percurso.
No dia seguinte, toco para Jacareacanga passando antes no acampamento da construtora Rabello, onde abasteço a moto. Foi uma dificuldade atravessar a ponte que eu citei há pouco: a moto resvalava para todos os lados, em cima das toras. Às 11h10, entro em Jacareacanga, um povoado de casas de palha e um enorme aeroporto onde, de 10 em 10 minutos, decolam monomotores para os garimpos de ouro.
A moto tirou quase todo mundo de dentro de casa e, quando o sol está a pino, hora da sesta, papo-vai-papo-vem, conheço um comerciante de ouro. Ele diz nunca ter visto uma moto tão grande, eu digo que nunca vi ouro em pó. Ele dá uma risada, vai comigo até uma casa, chama dois amigos e derrama na minha frente, numa mesa especial, mais de cinco quilos de ouro puro. Educadamente, me pede desculpas por não ter mais ouro, diz que bonito mesmo é ver mais de dez quilos e que, se eu quiser esperar, o compadre dele foi ao garimpo comprar mais ouro e volta em duas horas. Agradeço e digo que só queria ver mesmo eram uns cinco gramas.
Às 14h20 do outro dia, depois de fotografar muito pela região, estou rodando no rumo da Prainha. Ao entrar na Transamazônica, a uns 700 metros, passo pela divisa dos Estados do Pará e Amazonas. Antes de chegar à balsa do rio Sucunduri, encontro um caçador com um porco nas costas. Ele me diz que a balsa está a dois quilômetros, e saio dali levando o porco até o posto de gasolina dele, ao lado de uma residência do DNER, onde abasteço a moto e troco óleo do cárter. Depois, vou ao posto, onde fui convidado pelo caçador, que também é gaúcho, a ajudar a comer o caititu ( porco do mato ).
Meia hora depois, chega o pessoal da Mineração Rio Vermelho, de helicóptero, e ficamos comendo o porco, assado com muito tempero, e conversamos até tarde. Saímos juntos, eu na moto e o piloto no helicóptero. Ele me acompanha por alguns momentos, depois acena e desaparece ( antes, ele dissera que ambos éramos loucos: eu, por andar de moto pela selva, à noite, sem uma arma; ele, por pilotar baixo no meio das árvores, com muitos bolsões de ar e rajadas de vento, com as pás do aparelho a menos de um metro da folhagem ).
Às 13 horas, passo a 32 Km da Prainha, mas como tenho gasolina para chegar a uma sub-residência mais à frente, passo adiante. Agora, vem a última balsa para chegar a Humaitá, reta final. Quando chego lá, dizem que não podem atravessar ninguém sábado e domingo ( se alguém chegar lá sexta-feira à noite, vai ter que esperar até segunda-feira. E o que acontece é a corrupção, como eu vi: uma Kombi pagou 100 cruzeiros para atravessar ). Eu mostro meu cartão e sou levado para o outro lado.
Aparece à minha frente uma placa indicando Humaitá 300 Km. Fico empolgado, pois vou entrar no asfalto pouco antes de Humaitá. A moto vai mais rápida – a velocidade máxima que consigo é 65 por hora. Me dá sede, procuro com a vista uma casa onde pedir água. Vai escurecer logo.
Não ando nem 25 quilômetros e acontece o que sempre esperei e nem gosto de lembrar: entro numa panela, a moto pula, entra no mato, volta, derrapa, apruma. Parei, com um pneu furado por um enorme prego. Para trocar a câmara, sou tão atacado de piuns ( uma espécie de borrachudo ) que coloco uma cueca na cabeça, tapando a boca e o nariz. Era uma nuvem que quase me impedia de respirar. Começo a me desesperar, pois nunca tinha visto tanto bicho me morder, pois agora as muriçocas ( um pernilongo grande ) se ajuntaram aos piuns. Faço uma fogueira e ponho mato verde para fazer mais fumaça, mas não deu certo.
Agora, estou tentando levantar a moto com uma alavanca e ela cai. Pela primeira vez, consigo levantá-la sozinho, usando o mesmo pau como alavanca. Mal termino de colocar a moto de pé, ouço um urro no mato. Penso que é minha imaginação. Torno a ouvir, em outra direção. Paro de mexer na moto, presto atenção e ouço o rugido de novo. Desta vez identifiquei o urro: é onça, e não é só uma. Lembrei-me imediatamente do papo com o gaúcho caçador, que contava que esta era a pior época das onças, que estão se acasalando e andam aos bandos, como os gatos.
Rapidamente, coloquei as caixas da moto no lugar, derramei um pouco de gasolina do galão e joguei um pouco no fogo. A escuridão era total em volta de mim, mas sabia que onça tem medo de fogo. Amarrei as tralhas de qualquer jeito, pulei em cima da moto e saí que nem um louco, a 40 por hora, os dois pés arrastando no chão.
Dez quilômetros depois, encontro um igarapé, mas o medo era maior que a sede e torno a rodar e só vou parar 40 quilômetros depois, num acampamento na beira da estrada. São cinco homens que estão ali para abrir 12 fazendas, pois o Incra está dando às margens da estrada 3 mil metros de frente por fundo indefinido. Para isto, basta derrubar o mato, pôr uma placa escrito Fazenda e tal e já houve a posse de terras.
O caso é que fiquei satisfeito ao ver cinco homens, que levantam a moto enquanto tiro os dois pneus. Feito isso, tomo um banho e fico esperando uma carona, deitado, pitando um cigarrinho de palha para economizar os últimos dois que tenho. Como meu santo é forte, passa a Kombi que tinha dado os 100 cruzeiros na balsa.
Ganho a carona. Oitenta quilômetros depois, a Kombi pára no mato para o pessoal dormir e jantar. Agradeço o jantar – comera no acampamento dos peões – e durmo na Kombi. Às cinco da manhã, saímos para Humaitá e chego a uma sub-residência, antes da cidade. Tiro os dois pneus da Kombi, esqueço o galão de gasolina, mostro o cartão para o encarregado, mas ele não tem pneu de jipe. Peço que me levem a Humaitá e o encarregado sai, enquanto ensino o borracheiro como desmontar os pneus.
O encarregado volta com um pneu de jipe, dizendo que é da charrete de um colono. Falo que depois me comunicarei com o chefe de Humaitá e coloco o pneu na moto: é lameiro e serve direitinho. Um caminhão basculante me leva de volta até onde deixei a moto, 182 Km para trás.
Coloco o pneu traseiro e vou pôr o dianteiro de jipe. Como o pneu é muito alto, sou obrigado a arrancar o para-lama. Saio rodando devagar, pois estranho o pneu da frente, que derrapa no cascalho. Chego à sub-residência às nove da noite, com a gasolina na reserva. Durmo ali.
Saio às sete da manhã, e chego à placa indicando Humaitá do outro lado do rio Madeira às 9h50. Na balsa, todos querem falar comigo, mas não estou para muita conversa ( pela primeira vez ), concentrado em relembrar a viagem, feita com pouco dinheiro, sem uma arma, com esposa e filhas me esperando. Mas fiz o que poucos homens fizeram: em boas condições financeiras, vendi minha firma para viajar e volto a Manaus para começar tudo de novo, sem um pingo de arrependimento.
Passo pela prefeitura de Humaitá, pego outra declaração, e procuro o engenheiro da residência do DNER. Peço gasolina, óleo e um galão plástico para levar reserva de gasolina. Tem postos na estrada, mas estou sem dinheiro: sobraram apenas 5 cruzeiros, com os quais compro um maço de cigarros barato e tomo um cafezinho.
O rumo agora é Manaus. São quase 4h da tarde e a fome é grande. Tomo três copos de água e saio rodando. Quanto mais a fome aperta, mais a moto corre, pois agora estou no asfalto – a estrada Manaus-Porto-Velho foi inaugurada em março. Chego ao acampamento do DNER a uns 100 Km do encontro das águas do Rio Negro com o Amazonas, a uns 8 Km de Manaus.
São 3 horas da manhã e acordo o engenheiro responsável, que fica apavorado, pois não tem acomodação para mim. Digo que não se preocupe, pois dormirei dentro de um carro. Depois pego um vigia e vou com ele à cozinha. Como oito ovos fritos, cenoura, mamão, peixe, pão, queijo, suco e café. E não comi mais porque cochilei em cima do prato. Acordo mais cedo que o engenheiro, abasteço a moto, completo o óleo.
Às 2 horas da tarde, saio da balsa e piso o solo de Manaus. Saio buzinando, paro na casa do Edson, meu primo, e fumo um bom Minister. Ele compra meia dúzia de cerveja e, às 9 horas da noite, tomo um banho.
Cheguei a Manaus no dia 23 de junho de 1976, depois de uma viagem que durou quatro meses e quatro dias. Gastei 32 mil cruzeiros, contando com a venda do equipamento da moto. Levei oito quedas e saí arranhado em apenas uma. Conversei com mais de três mil pessoas.
Hoje é 27 de junho de 1976. Já estou trabalhando, começando tudo de novo, pois só tenho a esposa, as filhas Daniela e Paula e uma moto Harley Davidson 1976 que parece 1940 ( toda arranhada, faltando farol e piscas ).
E tenho, também, a honra de ter feito a maior viagem de moto dentro do Brasil e de ter sido o primeiro motociclista a cruzar a Transamazônica. O velocímetro de minha moto entrou em Manaus marcando 13.241 milhas, o que significa 21.185 Km, mais 2.100 Km pelo rio Amazonas, o que dá um total de 23.285 Km percorridos dentro do Brasil.
FIM